Última Carta de Van Gogh a Théo

nunca me preocupei em reproduzir exactamente
aquilo que vejo e observo
a cor serve para me exprimir théo: amarelo
terra azul corvo lilás sol branco pomar vermelho
arles
sulfurosas cores cintilando sob o mistério
das estrelas na profunda noite afundadas onde
me alimento de café absinto tabaco visões e
um pedaço de pão théo
que o padeiro teve a bondade de fiar

o mistral sopra mesmo quando não sopra
os pomares estão em flor
o mistral torna-se róseo nas copas das ameixeiras
arde continuou a arder quando tentei matar aquele
que viu a minha paleta tornar-se límpida
mas acabei por desferir um golpe a mim mesmo
théo
cortei-me uma orelha e o mistral sopra agora
só de um lado do meu corpo os pomares estão em flor
e arles théo continua a arder sob a orelha cortada

por fim théo
em auvers voltei a cara para o sol
apontando o revólver ao peito senti o corpo
como um torrão de lama em fogo regressar ao início
num movimento de incendiado girassol


Al Berto
in A Secreta Vida das Imagens
O Medo
Assírio & Alvim, 2005

1 comentário:

Luís Costa disse...

Um excelente poema dedicado ao admirável, um homem povoado de demónios, Van Gogh, pintor que eu muito admiro .
Deixo um poema que também escrevi, há já uns anos atrás, para Van Gogh.

VAN GOGH

Pelos caminhos da Provença vejo-te
espreitando os corvos, os olhos cintilantes.
Em certas noites, os astros engolem os astros,
pulsam-te na tela, anteriores ao tempo.

Há nos campos de Arles uma explosão de cores
para onde te recolhes
quando o estômago, cibório de negras violências,
te rompe as pálpebras.

O sangue escorre da navalha.
Na casa amarela procuras a clemência do vazio.
Mas a pique, o firmamento infiltra-se no chão.
As tábuas rangem.

Ainda em carne , a alma enruga-se-te,
um sol subterrâneo. Estremeces.
A luz estiola-se de encontro às vísceras.
Impoluto, para dentro do corpo balbucias:

- um tiro de revolver é um girassol.

Luís Costa